“o navio negreiro
lá em alto mar
trazendo os africanospara trabalhar
oi, saravá
os africanos
sua gira é formosa
em qualquer lugar”
ponto de Pretos-velhos
foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. densa escuridão, breu do meu pesar, soluços e ais: asfixia... nunca chega o cais, melancolia... vozes abafadas. desventura-dor, já sem metáforas, minha vida entregue a esta diáspora.
foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. outrora fui trabalhador, guerreiro, príncipe, caçador. fui rainha, artesã, sacerdotisa. gente da minha gente. hoje sou apenas negra, negro, mercadoria que se avalia pelos dentes ou pela espessura das canelas.
misteriosa noite adentro, foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. Olorum, Oxalá, Oyá, Ogum. Oxum. Xangô, Iemanjá, Oxossi, Exu. minhas divindades ancestrais, que se tornaram forças da natureza, sempre empreendendo o trânsito entre o Orum e o Ayê, entre os Céus e a Terra. pois aqui, nesta terra para onde fomos trazidos, os orixás são uma crença estranha, exótica: macumba, coisa do diabo. coisa de preto, entende? então, haja sincretismo... com a malandragem de Exu, a coragem de Ogum, a sede de justiça de Xangô, sem deixar de lado a ousadia de Oyá e a sabedoria de Oxalá, estamos aí. das senzalas para os templos simples, nas favelas ou bairros afastados, sobrevivemos a tudo. inclusive à fúria daqueles que, com a bíblia embaixo do braço e sob a proteção divina – de um Deus branco, claro! – profanam nossos congás, nossos pejis, destroem nossas tendas e roças. tudo, é claro, em nome do Senhor.
pois bem! foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. escura como a noite em que sou afrontado, agredido, violado... “como é que é, negrinho?” – e, na truculência da revista, vêm as coronhadas e o seco estampido dos tiros. “corre, ladrão”; “preto filhadaputa. vagabundo”. um a menos no mundo.
sim, foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. minha maquiagem, minha rouca voz e meu balanço. pantomima, palco, holofotes. olhos fortes a perseguir a bola no gramado onde sonho e sou rei.
foi na travessia da imensa calunga que pude mirar pela primeira vez a minha face negra. após desesperada noite, brilhou o sol e, no espelho das águas, me descobri igual aos malungos que comigo vieram e ao meu lado prosseguem. me descobri homem livre: poeta, artista, artesão de meu próprio destino – protagonista! tecelão das liberdades que hoje guiam meu andar. vem de Aruanda, uandá: rede que conecta ritmos, poéticas e corpos. diferentes pensares, saberes e fazeres deste meu afrobrasil.
Texto: André Pinheiro
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